Gosto muito de ler as histórias de vida dos nossos guerreiros da Finansfera, principalmente aquelas de superação apesar de uma infância pobre e sem perspectivas.
Me permitem contar um pouco da minha também? Não é tão sofrida como outras que já li aqui na comunidade, mas ainda assim foi uma vitória chegar onde estou hoje. Vou contar de maneira bem resumida, ok?
Lá pelos anos 80 eu nasci. Meu pai era vendedor, e minha mãe dona de casa. Lembro ser uma criança aparentemente normal naquela época. Brincava na rua, ia ao colégio e tinha amigos. Até os 8 anos de idade a gente não tem muita percepção das coisas, e a noção de ser rico ou pobre não existia em minha mente. Morava em uma casa comum, e conhecia pessoas comuns que tinham rotinas parecidas. Meu pai pagava aluguel em uma casa pequena de 1 quarto, e ao mesmo tempo aos fins de semana, estava construindo uma casa em um terreno que comprou em sociedade com um tio. A ideia era economizar mensalmente para comprar os materiais de construção. Não era necessário pagar pedreiro, afinal de contas meu pai trabalhava na construção com a ajuda do meu tio. Em troca meu pai também ajudava na construção da casa desse tio nesse mesmo terreno.
Como dá para imaginar, eram raros os momentos que eu tinha o fim de semana para passear, soltar pipa ou jogar futebol com o meu pai, afinal ele estava sempre na obra para sairmos do aluguel. Sempre ouvi histórias de como meu pai adorava jogar futebol no time do bairro aos finais de semana, e imagino que abandonar isso para pegar um serviço de pedreiro aos fins de semana era difícil (após trabalhar 1 semana de pé como vendedor).
Meu pai perdeu o pai dele muito cedo, com uns 8 anos, e minha vó não tinha possibilidade de sustentar a família. Nessa idade meu pai foi enviado para um colégio interno que era de algum parente rico para viver e estudar. Em troca, ele fazia algumas atividades após o horário de estudo. Ele ficou neste colégio pelo menos uns 10 anos, vendo a família uma ou duas vezes por ano. Considerando este histórico, entendo perfeitamente que meu pai fosse obcecado em ter a própria casa para chamar de sua.
Meu irmão nasceu quando eu tinha 5 anos, e minha irmã com 7. Com a família aumentando, minha mãe começou a insistir para mudarmos para uma casa maior. Como a casa própria ainda não estava concluída, meu pai pegou um aluguel mais caro. Acredito que as coisas ficaram bem apertadas.
Três filhos, aluguel mais caro, e menos dinheiro sobrando para comprar os materiais de construção. Para quem não teve uma estrutura familiar adequada quando pequeno, acredito que a pressão em cima do meu pai foi grande. Sabe lá o que ele passou na infância naquele colégio interno... Ele até hoje fala o mínimo possível, mesmo quando a gente insiste em perguntar.
Uma fatalidade ocorreu: Meu pai perdeu o emprego. Estávamos nos anos 90 com inflação e a crise da dívida externa. Meu pai não tinha reservas financeiras e logo o padrão de vida começou a cair. Engraçado como criança não percebe as coisas não é? Lembro que na época o almoço mais comum em casa era arroz e ovo mexido, ou arroz e salsicha, ou arroz e sardinha em lata. Na época eu não percebia que isso era a dificuldade financeira, e só achava engraçado. Hoje em dia eu tenho ótimas lembranças de um prato só com arroz e ovo mexido, que é uma das minhas comidas preferidas.
Meu pai ficou devendo todo mundo. Comprava fiado em mercados e não tinha como pagar porque não arrumava emprego. Minha mãe começou a fazer misto quente para eu vender na rua para algumas pessoas. Não era bem na rua, pois eu vendia em algumas escolinhas de reforço que tinha no bairro. Mesmo assim não foi suficiente... A pressão foi muito forte e meu pai começou a beber muito. Passado um tempo, começou a agredir minha mãe. No final de tudo começou a praticamente morar na rua. Um dia passei na rua e ele estava todo sujo e com a cabeça raspada! Acho que ele me evitava, pois não me olhava quando passava na rua. Muitas pessoas me paravam na rua e perguntavam se meu pai tinha ficado maluco.
Alguns parentes dele de outra cidade souberam disso e foram ajudar. Arrumaram um emprego para ele em outra cidade, e logo depois nossa família toda se mudou, deixando toda a vergonha para trás e começando tudo de novo. E o melhor: Conhecendo gente nova que não sabia desse histórico.
Depois desse primeiro episódio, houveram outros dois períodos que meu pai entrou profundamente no alcoolismo e começou a agressão física à minha mãe dentro de casa novamente. Sempre isso me deixava profundamente perturbado. Percebo que após esses episódios, passei a ser uma pessoa diferente. Não sei se foram por causa desses traumas, ou se eu já estava predestinado a ser assim e apenas coincidiu com a mesma época. Me refiro à ser uma pessoa muito fechada e com poucos amigos. Isso foi mudando após os 18 anos, mas para algumas coisas ainda percebo que não foram embora totalmente.
Minha adolescência foi boa. Por mais que tenham havidos esses problemas, não vou ficar aqui me vitimizando. Violência doméstica e problemas com alcoolismo nas famílias é muito comum, mesmo não sendo aceitável.
Hoje sou muito orgulhoso, e quero ter minha independência. Não gosto de receber nada dos outros. Gosto de conquistar. Quando me mudei de cidade com a ajuda da família do meu pai, não foi apenas o emprego que conseguiram para ele. Sempre ajudavam com um valor em dinheiro todo mês, faziam compras no mercado, e ganhávamos as roupas dos nossos primos que eles não usavam mais. Até uma casa bem simples no pior bairro da cidade deram para o meu pai para ele não precisar pagar aluguel. Tivemos muita sorte! Qual família hoje em dia faz uma coisa dessas? Até com material de colégio eles nos ajudavam. Não é possível afirmar que eu seria um "zé ninguém" hoje em dia se não tivesse esse empurrãozinho, mas com certeza ajudou bastante. Não concordam?
Não querendo ser ingrato, mas isso foi bom porque não nos deixou na miséria, mas foi ruim porque mexeu com minha auto-estima. Não eram raras as vezes que meus primos ficavam jogando piadinha e tirando sarro que eu era pobre e usava as roupas deles. "Tiravam onda" com os tênis novos e coisas de marca. Tinham bicicletas e vídeo-game novos. Era uma humilhação ouvir essas coisas e ter que ficar mendigando para poder andar um pouco de bicicleta ou jogar vídeo game. O pior de tudo era o fato de serem primos muito "playboys" que sempre faziam questão de ficar comparando e humilhando.
Eu vivia em dois mundos muito distantes. O bairro que eu morava era muito diferente do que havia morado antes. Era muito pobre e as crianças eram muito "avançadas" e maliciosas para a idade. Eu era muito inocente. Não conseguia me envolver com aquela turma pois eu era visto como um estranho. Mesmo usando roupas usadas dos meus primos, ainda pareciam bem melhores do que a deles, portanto tinham inveja. Quando me aceitaram para jogar futebol uma vez fiquei alegre, até logo descobrir que era só uma estratégia para roubar a minha bola.
No outro mundo dos meus primos, eu também era considerado um peixe no aquário errado. Era nítido que eu era diferente, e meus primos faziam questão de contar para todos os nossos "amigos" onde eu morava, que meu pai recebia ajuda e que eu usava a roupa que eles não queriam mais. Então nos dias de semana eu ia ao colégio e na volta ficava praticamente só em casa. Aos fins de semana ia brincar na casa da minha vó onde todos os primos se reuniam juntamente com todas as crianças daquele bairro chique. Eu ficava boquiaberto com as coisas que eles tinham. Na época era moda o desenho animado "Cavalheiros do Zodíaco", e aqueles meninos ganhavam dos pais uns bonecos dos personagens que custavam o salário mínimo na época. Meu pai ganhava um salário mínimo por mês. Dá para imaginar o abismo em que eu me encontrava não é?
Como o colégio que frequentava era em outro bairro menos pobre e mais parecido com o que morava anteriormente, logo fiz algumas amizades que perduram até hoje (mesmo sendo introvertido na época). Várias vezes eu ia a pé para o outro bairro para brincar com as crianças de lá. No bairro pobre que morava nunca fiz amigos e não conheço praticamente ninguém até hoje.
Meu pai sempre foi muito trabalhador, e essas crises com alcoolismo não se devem ao fato de ser um vagabundo de bar, ele só não aguentava as pressão da vida. Desde cedo ele me colocou para fazer várias atividades domésticas. Quer alguns exemplos?
Varrer o quintal (era enorme e tinham várias árvores)
Cortar a grama com tesoura de jardinagem
Capinar o quintal
Tirar o mato com a mão dos canteiros de plantações (eram vários)
Cuidar do galinheiro, alimentando as galinhas e tirando as "bostas"
Ser o servente de pedreiro nas várias ocasiões que ele fazia os muros e aumentava nossa casa
Etc
Acredito que mesmo não gostando disso na época, e me sentindo a criança mais azarada do mundo (meus amigos não faziam nada, só estudavam), isso me ajudou muito e me fez ser a pessoa guerreira e batalhadora de hoje.
Mesmo na infância isso me ajudou. Na época existia uma febre de Super Nintendo. Todos meus primos e amigos ricos do bairro da minha avó tinham vídeo-game, mas eu evitava jogar lá para me abster da humilhação a que era submetido. No bairro que tinha amigos (do colégio), a moda na época eram aquelas casas de games. Tinham várias TVs e consoles para jogar, e a gente pagava por hora. Eu lembro bem que você poderia trocar de jogo a cada meia hora no mínimo, nunca menos. Como meu pai não tinha dinheiro para isso, o que acabei fazendo foi fazer o meu próprio canteiro de hortaliças em casa e comecei a cultivar couve e alface para vender no bairro. Também comecei a criar codornas para vender os ovos. Com a grana eu conseguia jogar vídeo game e comprar pequenas coisas que gostava. Até nesse bairro do colégio onde as crianças não eram ricas, a maioria lanchava salgados e refrigerantes durante o recreio. Eu que era mais humilde, "perdia" todo o recreio na fila para almoçar às nove horas da manhã. Com a grana daquele mini empreendimento infantil das couves, alfaces e codornas, as vezes me dava ao luxo de merendar uma pizza frita com coca-cola.
Não era chique assim, mas era tipo isso |
Um dia através de um grande processo seletivo no SENAI, fui aprovado após várias etapas e consegui fazer um bom curso técnico grátis. Minha média final foi 95, uma das melhores. Depois de algum tempo, esse curso me ajudou a entrar em uma grande fábrica para trabalhar. A pessoa que me colocou dentro dessa fábrica morava no meu bairro pobre, e eu já o havia ajudado alguns anos antes a "encher" a laje da casa do pai dele. Acho que isso deve ter pesado um pouco, afinal aquele garoto magrelo (eu) não era um vagabundo qualquer e poderia muito bem aguentar o tranco em um serviço pesado.
Bem, nessa altura da vida já tinha 18 anos e não era mais uma criança. Como o post é sobre a minha infância, o que acham de futuramente fazer um outro post falando sobre como foi minha vida profissional e adulta partindo do ponto onde parei?
Vocês gostam desse tipo de assunto? Gostaram desse post? Querem que eu continue? Deixem nos comentários abaixo.
Valeu! Até a próxima!
Belo relato, Bufunfa!
ResponderExcluirAlém de ficar contente pelo seu crescimento pessoal, tendo partido de uma infância humilde, tenho certeza de que você saberá valorizar suas conquistas. Ou seja, elas provavelmente não serão fugazes, mas um avanço contínuo.
Abraço!
Obrigado por passar por aqui Mascada!
ExcluirRealmente sou uma pessoa que fica feliz por qualquer coisa. Sou muito grato pelo que Deus tem me proporcionado.
Abraços
Muito interessante sua história!
ResponderExcluirVocê passou por muita coisa e não sucumbiu ao vitimismo! Com certeza já é um vencedor!
Aguardando os próximos capítulos!
Abraços!
Obrigado Ministro
ExcluirGrandeeeee, Bufunfa!
ResponderExcluirUm relator inspirador e muito bem escrito. Estou sempre dando uma passada por aqui, pra pegar umas dicas financeiras.
Abraços
Obrigado amigo House! Também sempre passo no seu blog quando tem novidades. Abraços!
ExcluirOlá SB,
ResponderExcluirSua história de vida é parecida com muitas do nosso Brasil. Bom que você venceu na vida e continua procurando crescer. Diferente de você, eu nasci e fui criado na zona rural. Nem sabia o que era TV.
Desejo bons investimentos.
Abraços.
Oi Cowboy! Obrigado por aparecer por aqui. Realmente a sua infância também foi sinistra. Percebo que as pessoas que enfrentaram mais dificuldades na vida são as que mais dão valor às coisas.
ExcluirFala Bufunfa!
ResponderExcluirQue história cara! Quando terminei o ensino médio fiquei mais ou menos o mesmo tempo que você parado. tédio demais...
Legal que apesar dos pesares, você está seguindo em frente... como disse o Ministro, você já é um vencedor!
Abraços
Obrigado amigo Inglês. Mas ainda não me sinto um vencedor totalmente. Vamos em frente na busca da IF! hahahaha
ExcluirBom Post Senhor Bufunfa.
ResponderExcluirEu acredito que as crianças que passaram por situações dificeis na infância tem dois caminhos.
Se fortalecem como no seu caso ou deixam se levar pela situação.
Eu lembro que também era o primo mais pobre da família.
Um abraço !!
Obrigado sem noção!
ExcluirRealmente isso é verdade. Ou vai ou racha...
Parabéns, realmente passou por uma infância um pouco conturbada. Boa postagem.
ResponderExcluirObrigado Beto. Abraços!
ExcluirMuito foda sua história, pesada mas cheia de superação. Parabéns
ResponderExcluirEngraçado Bufunfa, temos uma história parecida em termos de desgraças, atitudes e superações. A diferença é que nasci no início de 90.
ResponderExcluirAté mesmo um caso de boneco de cavaleiro tenho
Fico feliz que tenha superado essas dificuldades. Estou na mesma luta. Já tenho algumas vitórias mas estou sempre em busca de mais.
Faz muito anos eu procurava alguém com realidade parecida.
Estarei te acompanhando aqui de hj em diante.
Pois é Brasuca, mas hoje vendo o que passou q sinto mais onq ocorreu. Na época me achava normal. Estranho era os outros q tinham muita grana. Kkkkk. Obrigado por acompanhar aqui. Sempre q puder vá comentando para irmos batendo papo. Abraços.
Excluir